22/12/2010

Contribuição introdutória apresentada na Jornada Contra o TGV

  1. As análises do TGV

Esta apresentação vai ser algo difícil. Vou ser principalmente eu a falar, e no entanto vou falar em “nós”. Este “nós” que é simplesmente um grupo de companheiros que decidiu organizar este encontro.
Há tantas análises que se podem fazer sobre o TGV quantas as razões para o combater: a beleza aqui reside em superar as análises e aplicá-las.
Dizemos que o TGV é um projecto de morte, e isto não se trata de um exagero. Por onde passa, o que era deixa de ser. E não quer dizer que nos contentemos com o existente, é só que por alguma razão brincar no meio das árvores ainda nos dá mais alegria do que ver passar os comboios.
A rejeição do TGV é, para nós, algo essencialmente visceral, hoje que a racionalidade se apoderou de todas as relações humanas. Neste sentido, a nossa rejeição do TGV é contra a própria medição das coisas, esse omnipresente acto de quantificação, de prós e contras, de racionalização e relativização.
Não é fácil, portanto, apresentar as razões pelas quais o TGV é um projecto de morte: trata-se mais de um sentimento do que de uma lista de argumentos. Não suportamos a ideia de um monstro de aço a rasgar os campos. Não porque tenhamos uma visão ecologista do mundo, mas porque a vida que queremos precisa de espaços que se estendem sem fronteiras. A raiva que sentimos em relação ao TGV é profundamente egoísta.
Costuma dizer-se que é fácil concordarmos nas análises que fazemos do mundo, e onde divergimos é nos métodos para o confrontar. Aqui passa-se o contrário: apurámos afinidades ao longo do tempo e do conhecimento mútuo, ao mesmo tempo que cada um tem a sua própria análise sobre a importância deste projecto, a sua diferença qualitativa ou quantitativa em relação ao que já existe, o enfoque no ambiente, nos indivíduos ou no lucro e desenvolvimento capitalista e estatal, etc…
Apresentar aqui a “nossa” análises do TGV seria, no mínimo, uma falsidade, pois cada um teria de falar por si mesmo durante algum tempo.
Há um ponto, contudo, onde as nossas análises confluem: o TGV tem de ser parado.
Há uma enorme tendência para nos resignarmos à análise das coisas, numa eterna espiral que, se não alcança mais nada, pelo menos faz-nos alcançar um certo alívio de consciência. “Eu percebo o que se passa à minha volta”, pensamos, ancorados nos nossos portos de sabedoria. O que gostaríamos era de levantar âncora e ir passear noutras águas, mais perigosas mais talvez mais alegres e entusiasmantes.



  1. Superar as análises, aplicando-as

Aqui queremos retomar os exemplos das lutas em Itália e no País Basco, começando pela mais básica das constatações: por mais que digam que o avanço do TGV é inevitável e que ele seja um projecto gigantesco, há lutas em curso que o tentam travar. Quais os limites dessas lutas discutiremos mais tarde.
Uma relação mínima que existe entre essas 2 lutas é a possibilidade de acção anti-política. Talvez este possibilidade exista sempre, em cada situação, mas torna-se ainda mais interessante quando comunicada com outros. A questão parece ser “como manter uma acção anti-política alastrando-a a outros, sem que os outros nos puxem para o campo da política?”.
Quisemos falar com estes companheiros porque sentimos que ambas as lutas não são homogéneas, há forças distintas e até opostas envolvidas, e conhecer as reflexões dos nossos companheiros sobre as coisas que nos dizem respeito a todos é, para nós, muito mais importante que 1000 histórias sobre a grandeza dos “movimentos sociais” e sobre a beleza da vontade popular… vontade essa que sentimos viver, muitas vezes, à custa do sufoco da rebelião individual. Mais uma vez, “como fazer para que uma acção colectiva seja simplesmente o amplificar de cada ímpeto individual envolvido?”.
Em todo o caso, é experimentando que vemos o que acontece, sabendo que nos esforçamos ao máximo para não deixar nada ao acaso. “A insurreição é onde o rigor e a leviandade se encontram”.



  1. A céu aberto”, como outros disseram

As ideias que temos sobre o existente têm uma característica diferenciadora: a inimizade. Isto em si pode fazer toda a diferença, tanto em momentos de guerra e conflito como de paz e negociação. Onde a sedimentação social se instala, permanece ainda a possibilidade de levar as coisas mais longe.
Mas esta possibilidade, esta potencialidade, é algo que temos de experimentar, se é que não queremos ficar eternamente à espera de qualquer coisa, mesmo que duma certa espontaneidade que tantas vezes teima em não chegar…
Conhecer o que se passa tanto em Val Susa como no País Basco permite-nos ter uma melhor ideia das coisas. O outro é simplesmente um exemplo do que me está a acontecer a mim próprio. Sempre nos meteu problemas a partilha de informação em si, o conhecimento de outras realidades como algo exótico, a atitude de espectador de algo que não nos diz respeito embora nos possa fascinar.
Com as devidas diferenças que uma experiência directa pode clarificar, um projecto de devastação é sempre um projecto de devastação, e atacá-lo é sempre uma possibilidade.



  1. Um olhar sobre o que nos vai no coração

Gostávamos que o projecto do TGV fosse travado. Mas isto é simplesmente um objectivo, sobre o qual muita gente concorda. Em Lecce, numa luta contra o centro de detenção de imigrantes Regina Paccis, estavam presentes, entre outros, tanto anarquistas como membros do Fórum Social. Enquanto uns levavam em frente um ataque sem tréguas contra todas as pessoas e entidades relacionada com o centro, os outros negociavam com partidos e conversavam com o gestor/padre Lodeserto sobre as condições do centro.
O que mostra quem somos (cada indivíduo nesta sala, e lá fora) é precisamente o modo como decidimos viver as lutas que levamos a cabo. Se gostaríamos de parar o TGV, é bem verdade que os momentos vividos nesse percurso são o mais importante. Há sem dúvida uma ânsia por dignidade e alegria na revolta, sem as quais nada vale a pena. A questão é saber partilhá-las sem as deixar escapar.
Em última análise, todos podemos concordar com um ataque ao TGV (pelo menos se esse “ataque” se mantiver algo abstracto, uma declaração de princípios), todos nos sentimos seguros sob um slogan tão abrangente como “TGV NÃO”, todos podemos mesmo radicalizar o discurso sem radicalizar mais nada. Afinal, tudo isto são conquistas da democracia.
De todos os valores que nos vêm à cabeça, a eficácia não é com certeza o mais importante. A vitória e o fracasso são conceitos que não nos pertencem. Acreditamos sinceramente que através de uma luta constante, autónoma, auto-organizada e de ataque é possível destruir a RAVE, mas é por no decorrer desse processo antevermos já a vida que queremos, que queremos vivê-lo. Tudo o resto é menor.



  1. Uma simples indicação

Talvez achem estranho, mas não queremos sair daqui com “alguma coisa decidida”. Da nossa parte não haverá plataformas, manifestos conjuntos, assembleias deliberativas. Neste momento o que propomos é uma reflexão e uma discussão, que não se fiquem por este espaço e que não se percam na sua forma verbal.
Um percurso próprio: não de um “nós” inexistente, mas de cada um. A consciência de que um “movimento” ou é uma dinâmica propulsiva ou é uma prisão. O sentimento de que numa situação explosiva um só companheiro é melhor que 50 aliados.
Um percurso próprio, sem saltos forçados, nem paragens por conveniência: que cada um faça o seu caminho, e que eles se cruzem quando forem comuns.
Talvez assim se mexa um movimento real contra o TGV que se aproxime desde o início das relações que queremos viver.


18 de Dezembro de 2010

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