21/12/2010

[texto distribuido nas jornadas] Sobre a Alta Velocidade em Portugal.

Os tempos que vivemos não nos dão nenhuma razão para nos querermos conciliar com este mundo. A toxicidade da realidade social e ambiental deixam-nos a certeza de que se não fizermos frente a todas estas coisas tóxicas corremos sérios riscos de ver decapitada qualquer possibilidade de vida. A crescente militarização da sociedade com todas as suas rusgas, prisões, detenções e expulsões (com uma nova etapa iniciada a partir da recente cimeira da NATO em Lisboa), os delírios megalómanos da construção de barragens, portos, zonas comerciais, autoestradas e comboios de alta velocidade são o desafio que nos apresenta a sociedade. A perspectiva que temos é a de que estes delírios pertencem ao mesmo projecto, que têm o mesmo objectivo e portanto serão submetidos ao mesmo
apontar de dedos e afinar das armas. Neste “fazer frente” devemos ser capazes de criar pontes entre vários pontos, mas devemos ser suficientemente espertos para saber onde nosposicionar.
O TGV pode, eventualmente, não começar a ser construído já no inicio de 2011 pois a propaganda democrática diz-nos que a situação económica é instável e existe a ameaça de um cancelamento de muitos projectos de morte. Nada disto nos interessa pois se não existem comboios a rasgar as planícies e as montanhas hoje, eles virão amanhã e se nunca chegarem outros “comboios” necessitarão de ser parados.

Inaugurou Vossa Excelência, então aqui em Évora, uma nova fase de expansão do nosso parque industrial e tecnológico, que desde essa data e até hoje já permitiu que mais de vinte projectos industriais, de pequena, média e grande dimensão estejam em vias de se instalar, beneficiando de excepcionais condições de apoio municipal. Outros se anunciam para breve (...) foi também durante essa visita que Évora conheceu pela primeira vez na sua história a visão de um futuro, em que o dramático problema da escassez cíclica de água, mesmo para consumo humano, deixou de ser uma ameaça anualmente repetida. Através da adoção de água do Alqueva para Monte Novo, e daí para a Cidade e Concelho, temos hoje a garantia de quantidade e qualidade suficientes para podermos enfrentar o futuro com segurança podendo garantir o acolhimento para novos projectos empresariais com o natural acréscimo de população necessária para o aproveitamento das oportunidades de emprego que irão surgir.”
José Oliveira, presidente da Câmara Municipal de Évora, dirigindo-se a José Sócrates.



Em 2009 a extensão da linha de Alta velocidade na Europa atingia os 5800km prevendo-se que em 2025 este número atinja os 20000km. Países como a Suécia, Rússia, Polónia, Noruega e Finlândia, Áustria, Croácia, Hungria e Roménia prevêem construir linhas de alta velocidade.
Em Portugal, após a obtenção das Declarações de Impacto Ambiental da Agência Portuguesa do Ambiente necessárias a que o projecto do TGV possa ser posto em prática foi lançado o concurso para a sua construção. Segundo os técnicos, engenheiros e burocratas da RAVE, (1) estas são as características do projecto do TGV em Portugal.

De Norte a Sul existem vários troços planeados para serem construídos (Porto-Vigo, Lisboa-Porto) mas aquele em que nos vamos centrar é o troço Poceirão-Caia integrado na ligação Lisboa-Madrid (ligação prioritária) já que é o único com concurso concluído e financiamento aprovado e aquele que avançará no terreno nos próximos meses. Trata-se então de uma linha de alta velocidade com 167km de comprimento e o objectivo é fazer a viagem entre Lisboa e Madrid em 2h45m, o que obrigará a velocidades de deslocação na ordem dos 350km/h. Assim o traçado da linha de Alta velocidade Lisboa-Madrid terá para além da estação de Lisboa, no Oriente, a estação de Évora e a estação fronteiriça de Caia, junto à fronteira com Espanha. Terminará na Estação madrilena de Atocha perfazendo um total de 640km de linha, 206 dos quais em Portugal. Compreenderá ainda sete estações intermédias. Espera-se que esteja construída em 2013 e terá serviço de transportes tanto de passageiros como de mercadorias (tráfego misto). Como parte do projecto do TGV, e para ligar o porto de Sines a Madrid e daí a Paris, uma linha convencional de mercadorias parte de Sines, liga-se à linha de Alta Velocidade em Évora e segue junto com esta até à fronteira onde se liga a uma estrutura semelhante em Espanha. A bitola ferroviária (distância entre carris) em Portugal e Espanha é diferente da do resto da Europa e este problema será ultrapassado com a constituição da nova linha de alta velocidade
Deparamo-nos então com uma linha de comboio altamente tecnológica de 167km de comprimento e 14m de largura à qual se junta, a partir de Évora, a linha convencional fazendo com passe a ter 23m de largura. Somado a isto vedações passamos a ter um total de 40m de largura a rasgar o território.
Com tudo isto o Poceirão irá tornar-se um ponto importante nas comunicações comerciais já que servirá enquanto plataforma para vários tipos de transporte. Será construído o novo aeroporto no Campo de Tiro de Alcochete, projecto que vem obviamente enquadrado no troço em questão e também já estará construída a plataforma logística do Poceirão (2). No futuro a construção da terceira travessia do Tejo (TTT) constituirá mais um acesso a Lisboa com o seu nó principal no Poceirão e a alta velocidade tem de necessariamente servir a plataforma logística do Poceirão.
A linha existente em Évora sofrerá uma intervenção sendo modernizada a linha a partir da saída Norte da actual Estação até ao ponto em que se cruza com a linha de alta velocidade na estação de Évora-Norte. Esta última será construída enquanto ponto onde se cruzam a linha convencional vinda de Sines, a linha de alta velocidade e a linha que liga ao centro de Évora. Esta localizada bem junto a dois empreendimentos turísticos classificados como PIN's ( o projecto da Herdade de Sousa da Sé e o projecto Royal Évora).
Em Elvas, à semelhança do Poceirão será construída uma plataforma logística, projecto fundamental do programa Portugal Logístico
Ao longo de todo o troço são vários os pontos onde são necessárias construir várias infra-estruturas de apoio à circulação de comboios como, por exemplo, postos de ultrapassagem e estacionamento. Existem ainda 3 subestações ao longo do percurso: no Poceirão, antes da estação de Évora e a seguir ao Alandroal. Outras estruturas serão ainda construídas para este projecto. São estas cerca de 36 pontes e viadutos num total de 16km de extensão, sendo que o viaduto mais longo compreende cerca de 2600m de extensão e 13 deles têm mais de 500m. Existem também 91 passagens superiores e 22 passagens inferiores.

...trata-se de uma infra-estrutura com a maior rigidez. Até há muito pouco tempo a infra-estrutura mais rija e impactante no território eram as auto-estradas...e a linha de alta velocidade, com estas características de tráfego misto, é de facto uma infra-estrutura muito pesada e inflexível.”
João Fernandes, engenheiro da RAVE

Perante este cenário parece inevitável que sejam abatidos milhares de hectares de árvores (sobreiro, azinho, pinho), que os ecossistemas das zonas por onde passam sejam irreversivelmente afectados, que lagoas, ribeiras e rios sejam afectados ao longo dos concelhos do Barreiro, Moita, Palmela, Vendas Novas, Montemor-o-novo, Arraiolos, Évora, Redondo, Alandroal, Vila Viçosa e Elvas. Mas também que sejam destruídas casas e zonas agrícolas, que o território seja dividido e retalhado por linhas de metal por onde passam comboios a 300km/h e que estas barreiras impostas pelo Homem destruam dinâmicas locais.(3)
São inúmeros os impactos na natureza, muito para lá da visão tecnicista e burocrática de Declarações de Impacto Ambiental. Mais a mais estando aqui a lidar com um projecto que se caracteriza por atravessar vários locais. Podemos com o tempo vir a conhecer mais e mais dados sobre a destruição que vai causar na natureza mas sejam estes quais sejam, não estamos a falar de um edifício ou um complexo que se constrói numa localização específica, mas de vários e diversos que constituem uma rede de destruição que se arrasta por centenas de quilómetros ao longo da paisagem a 350km/h.
Para lá do comboio e do meio de transporte de alta tecnologia existe toda uma economia que dele decorre e uma série de objectivos que foram traçados a partir das “portas que o TGV abriu”. Esta dinâmica é essencial num mega-projecto de desenvolvimento. Por isso o TGV é uma peça importante de um projecto muito maior que tem que ver com tornar a região de Portugal num xadrez de estâncias de turísticas e mega-complexos industriais.
Os estudos de impacto ambiental, económico e social têm a única preocupação de emitir pareceres positivos ou negativos em relação ao desenvolvimento da economia circundante ao projecto do TGV e o que se tem feito é vender o peixe do TGV a toda a gente sem se perceber o porquê de o comprar. Desta economia circundante depreendem-se todas as urbanizações e estações de comboio novas que vão nascer a partir do traçado do TGV, as plataformas logísticas, as “terceiras travessias sobre o Tejo” e obviamente o mercado da segurança que aquando de grandes investimentos sempre é necessário. Há ainda o mercado do emprego, toda uma série de serviços e obviamente os hoteis e as estâncias turísticas. O que daqui resulta é o “revitalizar da economia” ou como já sabemos, a corrida pelo ouro. Imaginemos os inúmeros contractos com empresas de construção para empreitadas de urbanizações em torno de novas estações, reabilitação de ruas, construção de estações e todo o comércio em redor. Se já são muitos os projectos que publicamente são anunciados, como é o caso da estação de Coimbra (4) ou a reabilitação das estações de Lisboa e da linha do Norte,(5) imagine-se todos aqueles que vão ainda ser planeados e com o tempo nascerão. As bases em que estes negócios estão assentes fazem deles um negócio milionário em que a luta pelo lucro se trava desde a “farinha que faz o bolo até às migalhas mais recônditas”. A fase de construção é apenas a ponta do icebergue, a manutenção e exploração das linhas e infra-estruturas representa uma verdadeira mina de ouro para as empresas envolvidas de forma que não é de admirar o porquê de este projecto ter dado tanto que falar (pelas piores razões) entre toda a classe política e empresarial.

Quem o vai construir e quem o apoia?

O processo de implementação do TGV em Portugal tem sido conduzido pela RAVE, rede ferroviária de alta velocidade S.A, mas, segundo várias notícias na imprensa, parece que esta vai ser extinta e integrada na REFER. Em todos os casos nada muda, apenas as siglas de quem nos quer impingir a alta velocidade
As obras públicas, o turismo e toda a sua construção civil e os eventos internacionais são grandes corridas ao ouro em Portugal. Dos concursos públicos às discussões sobre o tipo de financiamento de projectos tudo deixa transparecer que muita gente rói as unhas em desespero pois ao Estado compete (sabe-se lá por que processo) decidir a quem atribuir a construção dos projectos. Ora o TGV é um bom exemplo para conhecermos a rede de favores e amizades empresariais que se cobram e criam. Não que este sistema seja novo ou mesmo impressionante mas mais por constituir uma das grandes contradições da democracia em Portugal e que nos pode ajudar a ver quem é quem neste jogo sujo de nos tentar governar.
A obra da construção do troço Poceirão-Caia foi adjudicada ao grupo económico ELOS-ligações de alta velocidade (6) que não passa de uma amalgama de empresas, bancos e construtoras que em conjunto criam uma relação simbiótica benéfica para o objectivo que o grupo persegue, mas em concorrência com outros grupos. À ELOS pertencem empresas tão conhecidas como a construtora Soares da Costa, a Brisa Estradas de Portugal ou a Caixa Geral de Depósitos e portanto, enquanto estrutura mafiosa, funciona exactamente a partir de associações e parcerias entre grupos de distintas áreas.
Obviamente não existe nenhum poder económico que opere sem uma máfia partidária qualquer e em Portugal foi a esquerda que fez o favor a José Sócrates de aprovar o projecto do TGV. Como um bom sistema partidário não vive sem orgias de todo o tipo nada disto se fez sem um jogo de acordos e cedências. Um possível exemplo deste tipo de cedências poderá ter sido a aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Tendo já obtido a vitória numa velha batalha bloquista, não restou outra hipótese a este partido que não aprovar o TGV. Um dos pontos mais caricatos reside nos argumentos que partidos como o Bloco de Esquerda desferem na hora de justificar o TGV: A defesa da economia capitalista desde que esta seja nacional. O facto de criticar as parcerias publico-privadas propondo o investimento público que na verdade virá apenas de outras empresas mais amigas dos bloquistas. Em suma, toda uma aproximação à social-democracia e à defesa incondicional do poder estatal. Ora isto não seria de estranhar não fosse a reivindicação de toda a esquerda de querer uma sociedade sem classes e além disso de ter tentado instrumentalizar inúmeras lutas a o longo do tempo. A questão fundamental reside na necessidade de desmascarar estas forças enquanto formas de combater o poder e o capital e finalmente cola-las ao que são, ou seja, forças de manutenção da ordem e do Estado, sob pena de estas tentarem em algum momento tornar suas lutas que decorrem longe das suas cadeiras no parlamento. Um outro grande argumento estratégico na aprovação à esquerda do TGV é a questão de os partidos de direita estarem contra o projecto pois este “não é viável na actual conjuntura de crise económica...e...apenas conversa de políticos”. Ora, aqui nem há muito a dizer já que é óbvio que não foram as empresas desejadas pela direita que ganharam o concurso de construção e nesse sentido vão desferir qualquer argumento que seja para forçar um atraso na sua construção e nesse processo e retirar a sua quota-parte nesse projecto. O TGV não é um projecto da esquerda nem da direita, mas um projecto do Capital tenha ele que cor tiver. Ser contra o TGV não é o mesmo que achar que não é momento de o construir. O projecto de destruição que ele constitui não tem razão de ser nem no Alentejo, nem no Norte nem em lugar nenhum deste planeta.
A contestação ao TGV, para além daquela que é feita nos meandros económicos e jurídicos, teve já alguns episódios. Por exemplo em Silveiras, freguesia de Montemor-o-Novo um grupo de cidadãos contesta o traçado do TGV por este passar demasiado perto da povoação, concretamente a 200 metros de uma extremidade da povoação e entre várias outras razões, também porque o projecto naquela zona vai destruir cerca de 1000 Sobreiros (7). Na sua maioria, estas mobilizações, exigem não mais que mudanças concretas em questões como o traçado da linha de Alta Velocidade. O TGV terá impactos imediatos na vida concreta das localidades por onde passa e é importante que seja exactamente nessas localidades que se conteste o projecto. Por outro lado ele tem a particularidade de atravessar vários locais. Partindo daqui seria importante a criação de uma dinâmica de contestação que, tal como o comboio, se espalhe e comunique entre diferentes pontos. No centro desta ideia está o abandono de um certo egoísmo que permite mandar o problema da nossa aldeia para cima da aldeia ao lado, pois se queremos que não passe aqui isso quer dizer que não queremos que passe em lado nenhum. Os projectos do capital são tudo menos locais, embora se manifestem de formas diferentes em sítios diferentes. O seu objectivo, nos dias de hoje, é implementarem-se em todo o lado. Mesmo quando certas coisas são erguidas em pontos específicos do território não podemos esquecer que se tratam apenas de partes de uma coisa maior, mais pensada, mais extensa. O TGV é um exemplo brilhante desta característica da ideologia do progresso, já que a quantidade de projectos periféricos que se iniciaram a reboque do TGV gerarão possivelmente mais dinheiro que o projecto em si fazendo dele um dos projectos base do sistema económico em Portugal.

Porque é que é importante que ele exista em Portugal?

Sendo as redes de alta velocidade na Europa uma realidade já há muito tempo, não podia a região portuguesa ficar atrás. Assim, mesmo que não se justifique a criação de um comboio de alta velocidade que custa milhões num terreno tão pequeno (um argumento que embora seja puramente económico/geográfico típico dos poupadinhos da nação, não deixa de nos dar elementos para compreender o que se passa) este não deixa de ser construído pois a concepção do território é a de um espaço económico, logo possivelmente rentável. Para a mentalidade “progressista” qualquer árvore, ave ou rio é avaliada em função do seu valor económico ao que a balança da economia responderá sempre pendendo para o lado do menor custo, logo do arrasar da natureza.
Esta é essencialmente a mentalidade dos modernos políticos, gestores, empresários e administradores que têm o progresso tecnológico como uma obsessão significando isso na prática uma megalomania de obras e construções. É assim em todo o lado, mas em Portugal juntamos-lhe um certo complexo histórico de atraso económico transversal a todas as instituições políticas
O facto histórico de que tenham sido os partidos da esquerda a aprovar hoje o projecto do TGV deixa antever o estado das coisas. A esquizofrenia que sofremos por estas bandas é verdadeiramente alucinante e num sítio onde as práticas livres de outros tempos estão perdidas é obviamente fácil deixarmo-nos consumir pelo o Meo, a Zon, os telemóveis, os automóveis topo de gama e finalmente o TGV. Não interessa se no mesmo local existem Serras e fábricas ou hortas e auto-estradas, o Estado e o Capital tentarão dar-nos sempre uma boa razão para isso e são essencialmente as suas razões que alcançam os ouvidos da maioria de nós.
O modus operandis é vender TGV's a quem tem fome e destruir a capacidade das pessoas de seguirem com as suas práticas e métodos lá onde estas ainda as tenham. Este contexto foi, depois do 25 de Abril, impulsionado pelos vários “socialismos” que foram passando sem propor nada que não fosse já uma sociedade de miséria e opressão e totalmente dependente do Estado. Foram os vários “socialismos” e “fascismos”, que, dizendo-se como alternativa aos vários “capitalismos” eram em si outra forma de capitalismo e autoridade. A relação povo-paizinho do tempo da outra senhora permanece a mesma e o último brinquedo é o TGV. A economia nacional, seja ela a do Estado novo ou a dos socialistas é sempre economizar as nossas vidas e é sempre nacionalista. Por esta hora palpitam nos meios de comunicação toda uma série de discussões acerca dos benefícios nacionais da Alta Velocidade. A ameaça do nacionalismo vem sempre ao de cima nos momentos em que grandes projectos se anunciam e isso é até previsível já que as grandes obras sempre foram anunciadas “no tempo da outra senhora” e sempre foram usadas como propaganda para justificar a existência do Estado. A única diferença é que no passado serviam para justificar o grande império português e hoje servem para justificar o progresso, o desenvolvimento e a democracia. Diferentes nomes para um mesmo império.
É difícil argumentar que o TGV e outros projectos para nada nos servem quando os debates partem do princípio de que necessitamos dos seus construtores pois estes são não só os donos do território mas também aqueles que dos quais uma parte da população depende para trabalhar. Acabamos inevitavelmente a depender do emprego que os grupos económicos nos dão e essa é a chantagem de tudo isto.
Por outro lado é também difícil negar que o decrescimento da luta contra o capital é o sucesso do TGV. Os sonhos de pleno emprego tão propagandeado por todas as forças políticas traduzem-se hoje na inevitabilidade de termos de aceitar qualquer emprego que nos ofereçam e mais concretamente o sector chave em todo o projecto do TGV que é o turismo. A mentira do pleno emprego além de ser a verdade da plena escravatura é também a verdade da plena relativização pois o emprego é hoje em dia volátil e como se não bastasse serve de justificação para todo e qualquer projecto de controlo social e destruição da vida que os políticos e os partidos se lembrem de criar. A febre da economia e a necessidade de a consolidar segue-nos de perto e mesmo que nos venham colocar gigantescas fábricas ou Hotéis na floresta tudo está bem pois haverá trabalho.
A capacidade da burguesia Europeia de se deslocar de forma segura a Portugal para desfrutar das suas refinarias, fábricas e complexos turísticos é enormemente potenciada pela criação de um projecto deste tipo, mais a mais perante o facto desta região se estar a tornar o “campo de Golfe da Europa”. Ora, vejamos bem o que se depara perante nós: A única coisa que se constrói são resorts, complexos comerciais, plataformas logísticas e obviamente edifícios, de preferência nas periferias das cidades. Tal qual a peste, as novas construção e o betão alastram de forma caótica e violenta. Consequentemente a única forma de trabalho possível é no sector do turismo (hotéis, restaurantes e serviços associados) ou em outros sectores terciários (lojas, call-centers, etc etc). O ponto mais misterioso é que nada disto serve a ninguém e o sector imobiliário e das grandes obras, numa tentativa de se salvar das supostas crises, continua a construir apenas para ter alguma coisa para fazer, para criar o seu valor. É preciso dar jobs aos boys e o melhor para isso no país dos “patos bravos” é continuar a construir ao mesmo tempo que se impulsiona uma sociedade completamente dependente do Estado e das empresas.
Segundo um estudo elaborado, obviamente, por empresas e instituições ligadas ao sector turístico intitulado “Estudo sobre o Impacte da Rede de Alta Velocidade no Turismo Nacional” prevê-se que a alta velocidade em Portugal gere cerca de 36 mil novos empregos em Portugal só no sector do turismo e aumente o volume deste mercado em 553 milhões de Euros em 2030. (8)
Arriscar-se-ia a eleger o TGV como o projecto mais genial que aqui apareceu devido ao salto qualitativo imediato que origina, mas também pelas consequências a longo-prazo.
Todo este processo leva também à criação de um paraíso para cimeiras da NATO e reuniões de chefes de Estado, já que compreendemos que a fraca desconfiança sobre as iniciativas do Estado permite uma específica segurança para todos estes eventos. Não se trata de identificar agora o TGV como a pior coisa do mundo. Trata-se sim de notar que, sendo ele um importante e moderno projecto de desenvolvimento, traz consigo tudo o resto que faz desse desenvolvimento uma ameaça à liberdade e à vida. A crescente situação de miséria que decorre da dominação capitalista leva obviamente a uma necessidade de controlo e militarização das ruas das cidades por parte do Estado, o que por vezes sofre saltos quantitativos importantes. Foi o que aconteceu justamente agora com a cimeira da NATO e a actualização do aparelho policial. As grandes consequências de um evento destes notam-se a partir do momento em que estas terminam e as polícias, munidas de novos blindados e técnicas, possam pôr em prática tudo isso em operações que não duram dois dias em Novembro mas que se arrastam permanentemente no tempo. A situação no Rio de Janeiro leva-nos à mesma conclusão. Não podendo realizar os jogos olímpicos e o mundial de futebol e simultaneamente ter zonas onde o controlo do Estado não é total foi necessário realizar uma limpeza. Obviamente há toda a diferença entre o nível de conflito do Rio de Janeiro e Portugal. Com o TGV é parecido mas mais subtil, trata-se de valorizar o território e criar as condições a longo prazo para a chegada da urbanização, logo do seu controlo inerente, a todo o lado. Ao alterar a dinâmica própria de zonas rurais toda a dinâmica da cidade e do betão se arrasta para ai permitindo que onde existam rios se possa agora construir urbanizações. Mesmo que o local fique “feio” para os turistas pode sempre servir para todos os outros fazendo com que as cidades se alastrem. Com a urbanização e a criação de valor a nível de emprego, serviços e equipamento é necessário proteger tudo isso e é assim que se vai alastrando o controlo do Estado sobre tudo. O que em Portugal é estranho é que tudo isto se passa à luz do dia. Estamos a falar de zonas que sempre foram invisíveis para os políticos, zonas completamente esquecidas como o Alentejo, que foram agora redescobertas e eleitas felizes contempladas para serem atravessadas por um dos meios de transporte mais avançados que cá chegou.
Os conflitos decorrentes de tudo isto em Portugal são cada vez maiores, mais frequentes e flagrantes. Projectos como o TGV surgem exactamente enquanto impulso para toda uma série de mudanças para que essas diferenças se vejam diluídas num mar de mentiras do progresso e da democracia. Dando uma aparência de desenvolvimento e tecnocratização lá onde estão montes, vales e caminhos de cabras permitem aumentar a diferença entre o mundo que estas obras querem criar e o mundo real que toda a gente se depara no dia-a-dia. Perante a existência de linhas de alta velocidade e de uma rede de resorts torna-se mais difícil observar os bairros sociais, a violência policial, a miséria e a pobreza, as lutas pela defesa da natureza e acima de tudo, é difícil cheirar os confrontos, as rixas, os descontentamentos e as revoltas. Pode ser que o resultado da operação de cosmética seja o oposto e o único que poderá constituir uma solução para estes delírios: um agudizar da guerra social que se vive em todo o lado e levá-la lá onde as madames se passeiam e a polícia patrulha.

A sociedade da Alta Velocidade.

Das masmorras deste regime emergem as mesmas contradições de qualquer outro regime e o problema será sempre haver governos. O problema central na questão do TGV não é apenas o comboio e as suas implicações ambientais e sociais mas sim a sociedade que o constrói e que acima de tudo necessita dele para se reproduzir. Uma ideia base para compreendermos porque é que seria uma boa opção parar o TGV é que em todo este processo de crescimento do capital somos todos nós (que nunca vamos poder andar de TGV) que vamos ser levados e aniquilados enquanto seres humanos bem como o território que habitamos.

Podemos olhar para este projecto como apenas mais uma “coisa” que o capitalismo criou lado-a-lado com tantas outras e isto é essencialmente verdade: são tantos os projectos que nascem diariamente e são tantos os ataques contra a nossa liberdade e a possibilidade de uma vida digna que poderíamos ver o TGV como apenas mais um deles. Por outro lado essas coisas nocivas que o capitalismo inventa nascem a uma velocidade alucinante, mas o que o comboio de alta velocidade representa é quase a síntese de 200 anos de sociedade industrializada com toda a perversão nele contida. Para além disso ele vai ser construído neste sítio em que vivemos e é aqui que o queremos parar. Para lá das razões que localmente podemos assinalar para não querermos um TGV em lado nenhum estão todas as outras razões que independentemente do sítio onde este seja implementado são razões de igual força. O TGV contém em si os ingredientes para a mobilidade de mercadorias de forma segura e a reformulação das linhas de transporte mercantil na Europa, tem a diferença entre classes sociais chapada nos seus carris, o controlo e a dominação sobre a natureza e a sua consequente destruição, o modelo económico que durante tantos anos muitos foram aqueles que não deixaram de avisar que era necessário destruir, a modernidade podre da paz social e o controlo total sobre os indivíduos.

Actualmente, a sociedade não sobrevive sem “movimento” seja em que sector seja. As mercadorias, sendo todos os bens materiais que compõem o espectáculo do consumo, não podem deixar de fluir caso contrário toda a sociedade pára. O TGV enquanto projecto pioneiro na área do transporte cumpre à risca este requisito, mais a mais fá-lo da única maneira possível hoje em dia: a alta velocidade. Desde há alguns anos para cá se chegou à conclusão de que o transporte aéreo é tendencialmente inseguro e que é necessário algo mais consistente, algo que possa estar em todo o lado. O TGV vem dar resposta a esta preocupação e Portugal é neste momento mais um dos países que já possui TGV na sua rede de transportes. Assim toda a sociedade é organizada para permitir e potenciar o fluxo de mercadorias de um lado ao outro do mundo e ao ser introduzido mais um elemento nessa grande cadeia de transporte abrem-se portas para uma nova reestruturação dessa mesma rede em tempos, que nos querem fazer crer, de crise económica. Na verdade esta questão da mobilidade do TGV não se prende apenas com os bens de consumo ou com as matérias-primas para a indústria. A nossa vida (como as empresas e os grupos económicos a entendem) é ela também uma mercadoria que o capital usa em seu benefício e por isso dificilmente essa vida existe para lá da economia de mercado. É por isso que em todo este sonho da plena mobilidade e rapidez não entram todos os emigrantes que fogem dos seus países por diversas razões. É ultra-violento que a ausência de fronteiras para as mercadorias seja sinónimo de reforço militar dos postos fronteiriços para as pessoas. Para esses o transporte e a mobilidade são crimes e toda esta contradição vem a 350km à hora.

Uma das implicações mais óbvias deste projecto é o seu cariz destruidor do que resta de espaços naturais. Ver túneis e viadutos a atravessar montanhas e vales só pode agradar e fazer sentido para quem já nada sabe deste mundo, para quem nele apenas caminha ligado à corrente eléctrica. A forma como se olha para o território revela muito daquilo que somos e obviamente para quem tem a ideia de construir um comboio de alta velocidade o território é nada mais que um objecto possível de ser comprado, cotado e vendido. Não são aqueles que lá estão (animais, plantas, pessoas e tudo o resto) mas sim o valor económico que estes podem representar. O papel do TGV na questão da auto-criada “crise ecológica” e “energética” é o de se apresentar enquanto “a solução”, tal como as centrais nucleares se apresentam hoje em dia enquanto “a solução” para o problema das emissões de CO2. Em toda a propaganda pró-TGV surgem os mais variados elogios à natureza ecológica deste transporte. Num momento em que o capital mundial se apercebeu que para manter o controlo e domínio sobre o planeta necessita de se tornar “verde” o TGV surge como a alternativa frente ao avião e ao automóvel pois segundo os peritos as emissões de CO2 são reduzidas e trata-se de um transporte colectivo (pode ser que o seja para a comissão de moradores do Parque das Nações). Também aqui a sua função é evidente: fazer uso de factos cientificamente inegáveis para que não nos seja estranho. Diz-se então que o capitalismo entrou numa fase de sustentabilidade. Não assumindo que esta fase sustém apenas a actual ordem é declarado que a indústria e o mercado se regem agora por valores ecológicos que têm em vista assegurar a vida no planeta. Nada, mas mesmo nada, esconde que o que se trata aqui é de fazer permanecer a estrutura por mais anos já que a forma como se extraíam as matérias primas da terra (petróleo, metais etc etc) não pode continuar a ser a mesma. È necessário que o sistema industrial e tecnológico de produção encontre novas formas de “financiamento”. Para isso levam-nos a crer que eles, depois de terem criado um grandessíssimo problema ambiental, são a solução milagrosa. É assim que o novo capitalismo ecológico nos vai seduzindo a aceitar TGV's abrindo já as portas para centrais nucleares perante a crise energética e forçar-nos a aceitar o “mal menor”.




1Fonte: site oficial da rede de alta Velocidade, S.A (www.rave.pt)
2Basicamente trata-se de um complexo industrial que serve de apoio ao transporte e distribuição de mercadorias originárias dos Portos de Sines, Setúbal e Lisboa, ou seja serve como ponto de transporte e transbordo de mercadorias e serviços. Conta inicialmente com 200 hectares havendo a possibilidade de se alargar mais 200. O consorcio constituído pela Mota-Engil, Bento Pedroso Construções, BES e OPWAY é o constructor e financiador deste projecto inserido no programa Portugal Logístico que tem como lema “Nós somos o centro do Atlântico e não a periferia da Europa!”
3Recomenda-se a leitura do artigo “O progresso a toda a velocidade”, Revista Alambique nº3, Fevereiro 2010. Disponível em http://www.fastnbulbous.eu/fnb/alambique03_BQ.pdf
4Segundo informações disponibilizadas no site da RAVE (http://www.rave.pt/) “...A nova estação ficará localizada na proximidade da actual Estação de Coimbra B, e irá potenciar a reconversão urbanística de toda a zona envolvente e desenvolver um novo espaço da cidade, integrando-a na malha urbana e reforçando o impacto positivo desta nova infra-estrutura na economia local.” Podemos portanto antever uma reestruturação de todo o espaço urbano numa atitude de submissão e obediência ao projecto do TGV, coisa que nenhuma Câmara Municipal ou grande empresa deverá em tempo algum recusar ou deixar escapar.
5 Fazendo parte daquilo que chamam de “projecto geral de modernização da infra-estrutura ferroviária entre as estações de Areeiro e Sacavém” começarão de forma autónoma obras de requalificação de inúmeras ruas, avenidas, passagens de nível e acessos tanto na zona da Estação do Oriente como na zona de Sacavém.

6As empresas que constituem este grupo são: Brisa Auto-Estradas de Portugal S.A.; Soares da Costa Concessões SGPS, S.A.; Soares da Costa S.A.; Iridium Concesiones de Infraestructuras S.A.; Dragados S.A.; Lena Concessões e Serviços, SGPS, S.A.; Lena Engenharia e Construções, S.A.; Bento Pedroso Construções S.A.; Odebrecht, Investimentos em Concessões Ferroviárias, SGPS, S.A.; Edifer – Construções Pires Coelho & Fernandes, S.A.; Edifer – Desenvolvimento de Negócios, S.A.; Zagope – Construções e Engenharia, S.A.; Zagope SGPS, Lda.; Banco Millenium BCP Investimento, S.A.; Caixa Geral de Depósitos, S.A.
7Público, 28.05.2010
8. Segundo informações disponibilizadas em http://www.rave.pt/ “...Realizado pela Deloitte com o acompanhamento da Confederação do Turismo Português (CTP), este estudo conclui também que a AV poderá gerar mais 770 milhares de hóspedes e cerca de dois milhões de dormidas em 2030, contribuindo, de forma significativa, para o crescimento de um dos sectores considerados estratégicos para a economia nacional.”

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